domingo, 19 de junho de 2011

A má sorte dos inimigos da caridade (I)

Uma das pessoas que na minha opinião mais tem contribuído para a reanimação semântica de certas palavras em Portugal, tem sido Vasco Pulido Valente. Muita gente dedica tempo a tentar encontar e até colecionar os disparates desse génio. Não me dou a tal actividade porque sei bem que o que distingue o génio do homem comum, é a capacidade do primeiro ver mais longe que o último e não o facto de não avançar aqui ou ali um disparate.

Todos sabemos que o recordista mundial de velocidade pode andar tão devagar como um portador de deficiência motora, mas nunca um portador de tal deficiência pode correr tão rápido como o dito campeão.

Palavras que aqui há quinze anos estavam erradicadas do discurso público entraram em circulação. Palavras virtualmente ofensivas como bondade (reintroduzida em grande parte por VPV na expressão "bondade da decisão"), honestidade, herói, pessoa frágil, pobre (ao contrário de pobreza que se manteve sempre permitida), mentiroso, são agora ditas sem vergonha. 

Defendo que a melhor maneira de seguir a mudança duma cultura é seguindo a evolução das palavras do discurso aceite. As palavras proibidas começam a despontar em meios auto-limitados, sub-culturas, nichos, até que alguém as reintroduz (ou introduz) no discurso "mainstream", onde são  muitas vezes aceites com uma rapidez inesperada, que significa terem morrido ou sido digeridos conceitos que a conotavam de forma inaceitável ou, ao contrário, que soçobraram as ideias  que antagonizavam o seu uso. No naipe das palavras trava-se muito mais que uma batalha semântica, trava-se a guerra da mundivisão.

A evolução linguística das últimas duas décadas em Portugal tem sido uma sequência lenta de vitórias para a direita e para a verdade. Ainda recentemente, numa entrevista na SIC um homem da esquerda decente, António Barreto, teve uma expressão inesperada que dificilmente seria aceite há dois ou três anos: o entrevistador convidava Barreto a esclarecer que longe dele estava a ideia de demonizar fosse quem fosse, pois é óbvio que um homem tão ilustre não seria tentado por tal maniqueísmo, quando Barreto lhe diz de forma clara, quase brutal, que "não me importo de demonizar o demónio".

Essa entrevista é uma peça de antologia da mudança em curso na cultura portuguesa que quando passa pelo uso intencionado das palavras, tem como expressores pessoas com coragem intelectual acima da média.

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